terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Atribulações do Combatente

 NOTA-PRÉVIA:

O que temos a seguir, é um episódio profundamente incómodo e demonstrativo da maneira de aplicação da justiça em tempos de guerras ultramarinas.

Embora seja saudável rever as "Boas Memórias", tal como referimos em - https://picadasdamicaia.blogs.sapo.pt - as más memórias também servem para nos fortalecer e acautelar. 

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 Sábado, 17 de Outubro de 2009

Ilha do Ibo - Fortim e Prisão


 Fortim de má memória... com final para a estória! 

Casualmente, encontrei fotos do Fortim S.José, na ilha do Ibo, Moçambique, e não pude suster a emoção devido aos seguintes factos:.

FORTIM DA ILHA DO IBO – PRISÃO POLÍTICA

 

Ao ver a imagem deste fortim não pude conter a emoção que me tocou fundo por lá ter estado detido uma semana no ano de 1967. Durante uma missão operacional a Sul de Antadora-Diaca, depois de ouvir as instruções do novo comandante de companhia, tenente Castro Gonçalves: “vamos assaltar um acampamento onde pernoitam elementos da Frelimo, onde vivem famílias que os apoiam na logística, e tudo que mexer é para abater. Não vamos fazer prisioneiros, mesmo da população civil”. Como é sabido, os Pára-quedistas eram rigorosos e eficazes no cumprimento das missões de combate, mas não dizimavam população civil, especialmente mulheres e crianças.

Os murmúrios de descontentamento ouviram-se entre o pessoal da companhia; isso deu-me o ânimo suficiente para organizar o boicote à conclusão de tal assalto. Uma noite de chuva intensa ajudou a retardar o andamento da coluna que deveria estar nas proximidades do dito acampamento pela madrugada. Estando eu a recuperar dum ferimento sofrido na coxa esquerda, aquando duma emboscada no Vale de Miteda, por causa da fricção da farda molhada, comecei a ressentir-me e originei diversas paragens para ser socorrido pelo enfermeiro Franklin Armindo. Chegados ao local apropriado para preparar o assalto, a ribeira do Nango, afluente do rio Muera, estava caudalosa e impedia a passagem para o outro lado, onde estava localizado o dito acampamento. Esperando que as águas baixassem de nível, durante o dia, o pessoal foi dando sinais ao inimigo, tanto com o barulho dos cantis como ruídos de toda a ordem. Como à luz do dia não era aconselhável fazer o assalto, o tenente adiou para a manhã do dia seguinte, tendo sido encontrados apenas dois velhos dentro das palhotas. Vimos muitos sinais da presença de pessoas, mas nada mais foi encontrado.

A primeira missão do Tenente resultou num fracasso operacional. Logo fui acusado e ameaçado com processo disciplinar e tribunal de guerra.

Regressados a Diaca, acantonámos no Sagal onde estava o médico da companhia que me receitou diversos medicamentos para minorar a infecção que tinha na perna. Enquanto recuperava, outras missões foram levadas a cabo pela companhia, sem a minha participação, embora o tenente tentasse obrigar-se a ir com o meu grupo de combate.
 


Após dois dias do regresso ao BCP31-Beira, fui informado pelo oficial de justiça, Tenente FAP Sousa e Silva,  que tinha uma grave acusação com vista à minha detenção até que fosse concluído o processo disciplinar. Aproveitei os meus conhecimentos das Leis militares para elaborar uma exposição dirigida ao Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, tendo entregue uma cópia ao comando do Batalhão, mas só o fiz no dia seguinte ao registo da carta nos correios da Beira. Pois, corria o risco da carta ser interceptada antes de seguir ao destinatário.

Dois dias depois, pelas dez horas da noite fui detido no meu local de alojamento provisório (arrecadação de material de guerra do batalhão de que era responsável), onde trabalhava em fotografia. Pelas seis da manhã embarquei num avião DO-27, escoltado por um oficial Ppára-quedista e dois agentes da PIDE, seguindo até Nacala e depois para uma prisão na ilha do Ibo. Por outros casos antecedentes, receei pela minha vida. E não fora a boa aceitação da exposição que mandei para Lisboa, que deu origem a um longo e complicado processo de averiguações, onde cerca de 40 testemunhas, escolhidas dum grupo de mais de 150 que se dispuseram a defender-me, não sei o que teria sido o futuro. 

 

Por decisão do comandante Tenente-coronel Argentino Seixas, fui proibido de usar armas militares até ao fim do processo disciplinar, que ficou parado enquanto se desencadeou a audição de testemunhas num “Inquérito” determinado pelo Chefe de Estado-Maior da Força Aérea. A pedido do Comandante de companhia, capitão Mascarenhas Pessoa, passei a desempenhar funções de vague-mestre, dando boa assistência alimentar ao pessoal da companhia, durante as missões operacionais em Maúa, Macomia e Mocimboa do Rovuma. Ao fim de oito meses, por acordo entre as partes, foi encerrado o “inquérito”, ilibando-me de quaisquer responsabilidades.

Para atenuar o meu desconforto, o comandante determinou que o chefe da secretaria me concedesse “guia de marcha” para gozar licença na metrópole, onde acabei por estar dois meses. Aproveitei para visitar cinco países da Europa, à conta do chefe do conselho administrativo, que tinha desviado uma avultada quantia em dinheiro através das “saídas” para alimentação em zona operacional, sob a minha vigência de vague-mestre.

 

Curiosamente, em 2004, durante uma palestra na Quinta de Bonjóia, no Porto, encontrei-me com o então padre da Paróquia de Mueda, Faustino Limbombo. Ao ouvir a sua apresentação nessa conferência, apercebi-me que o mesmo nasceu precisamente na aldeia que pretendíamos assaltar e destruir. Disse que a mãe teve que fugir da tropa portuguesa e caminhar até outra aldeia mais a sul junto à mesma ribeira Nango, perto de Muidumbe; que isso aconteceu quando ele tinha oito dias de vida. Dos croquis e diário de missão que levava comigo e referentes a essa data, chegamos à feliz conclusão de que, a ser consumada a vontade do tenente Gonçalves, o padre Faustino seria uma das vítimas desse assalto. Há situações que nunca chegarão a ser esclarecidas como neste caso. 

 


Juntamente com um grupo de 67 Antigos Paraquedistas que combateram em Moçambique, em 2005 desloquei-me até Mueda, onde encontrei o Padre Faustino na difícil lide com os fiéis da sua paróquia, que percorre, por picadas e estradas, de bicicleta ou de motorizada, consoante tenha ou não dinheiro para a gasolina. Fazia os percursos até Nangade e Mocimboa da Praia, todas as semanas.

A nossa comitiva transportou grande quantidade de material escolar que entregámos à Associação de Combatentes pela Independência de Moçambique e ao Padre Limbombo, além de medicamentos e dinheiro (meticais e euros) como agradecimento por terem providenciado a limpeza do cemitério militar de Mueda, onde repousam mais de duzentos militares Portugueses, num deplorável e vergonhoso estado de abandono.

 

Repórter:  Joaquim Coelho

 

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