segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Porque fomos à guerra?

 

O Despertar dos Combatentes – em Tempo de guerra

 

     Nestes tempos sombrios da actualidade portuguesa, é nosso dever realçar os feitos extraordinários dos antepassados, que nos podem reanimar a esperança de lutarmos com convicção para melhorarmos o rumo da nossa vida colectiva, dentro duma nação com história e valores de dimensão mundial.

     Os Combatentes, portugueses nas guerras ultramarinas, foram os continuadores das memoráveis descobertas e souberam partilhar muito das suas vivências com as populações das terras para onde foram destacados. Mas a guerra é sempre incómoda e destrutiva; razão porque é natural que nenhum ser humano deseje a guerra.

     As lembranças da guerra fazem parte de nós… são o espólio que não conseguimos entregar no quartel aquando da desmobilização; fazem parte do nosso espólio de combatentes participantes numa guerra estranha e mal compreendida! Na embriagues do destino, fomos atirados para a guerra e confrontados com situações de espantar! Uns mais que outros, todos sentiram a mordedura da guerra nas suas vidas, tanto nos acampamentos e destacamentos espalhados entre as savanas e matas, ou nos aquartelamentos das vilas ou aldeamentos mais protegidos.

     Quantas vezes as deslocações se tornavam num inferno, tal a intensidade de fogo inimigo ou a potência das minas e dos fornilhos enterrados nas picadas. As morteiradas sobre os aquartelamentos eram um fadário angustiante, com as vidas pendentes enquanto não cessassem os vómitos das bocas-de-fogo e o zumbido da metralha nos ouvidos. Quando as camaratas eram atingidas e as camas desfeitas, os destroços de nada valem; tínhamos que fazer tudo de novo. As memórias da guerra são arrepiantes para muitos dos intervenientes directos.

     Os danos da guerra são dolorosos e deixam feridas difíceis de curar. Além da destruição dos bens, perdem-se amizades e as relações entre seres humanos não valorizam a vida e a sua essência. É contra todas essas perdas que procuro reagir dando valor à riqueza que nos resta - fortes laços de amizade e camaradagem, porque, entre os intervenientes nas guerras, esses valores foram a trave mestra a segurar a frágil condição humana de muitos combatentes, nos primeiros tempos de missão. Alguns perderam a bússola das suas vidas, numa agitação anormal da consciência e das emoções; não fora a mística do companheirismo, a desgraça dos traumatizados teria atingido uma dimensão muito mais grave e penosa para a sociedade portuguesa.


       Os jovens que um dia partiram das suas terras, arrancados do seio das suas famílias, foram desembarcados nos confins das terras de África, onde sobreviveram às angústias e aos perigos da guerra, também saberão responder adequadamente aos governantes que os desprezam como gente reles da sociedade. Saberão honrar as memórias de todos os que morreram ao serviço da Pátria, porque são os guardiões dos nobres valores da Nação civilizada e porque juraram defender a bandeira de Portugal contra os traidores que a amarrotam e envergonham; a força da ética e da moral militares são válidas em todos os escalões da sociedade, tanto na formação dos cidadãos como na aplicação da justiça. Pena é que muitos façam por ignorar tal factor de estabilidade social e equilíbrio emocional.

     Ninguém se esqueça que os combatentes foram empurrados para a guerra em circunstâncias adversas aos seus interesses, com fundamento na preservação do território português, tão propagado pela comunicação social e nos discursos oficiais. As características do povo português têm pouco de guerreiros mas muito de inocência ou moralismo ancestral, porque sempre fomos um povo mal compreendido pelos governantes com o complexo de superioridade justificado no compromisso mais absurdo da condição humana. A pregação dos superiores hierárquicos nunca foi capaz de justificar as razões da guerra nas terras ultramarinas, gratificante para alguns que colheram bons proventos, mas desgastante e dolorosa para a generalidade dos combatentes. Por razões de conveniência partidária, política e interesses militares, o abandono das terras ultramarinas criou graves prejuízos a muitos milhares de cidadãos que lá viviam, sendo a culpa da descolonização atirada para cima dos combatentes desmobilizados e abandonados à sua sorte. Por isso, aqueles que conseguiram integrar-se na sociedade, trabalhar e participar no desenvolvimento do país, tiveram o mérito de galgar as dificuldades e viver; já o mesmo não aconteceu com os que nunca conseguiram limpar da sua mente os traumas dos momentos difíceis, os quais continuam a carregar dentro de si as imagens terríveis dos mortos e esfacelados caídos a seu lado. Todos merecem respeito e reconhecimento, mas estes merecem, também, solidariedade pública.

     Freud soube definir as premissas que podem levar “os heróis ao espírito de luta” como justificativo da defesa duma comunidade que conduza ao conflito com significado moralista ou de defesa; daí se possa concluir que ninguém vai à guerra para ser herói, porque o sacrifício da própria vida não o justifica, especialmente quando os governantes desprezam a elite de homens que revelaram um estado de espírito altruísta e abnegado em circunstâncias severamente adversas na defesa das causas da Pátria. Embora não fossem bem compreendidos na sua missão, não desertaram… e cumpriram o sagrado dever que a Pátria lhes impôs, transmitindo à sociedade os valores duma elite moral e cívica que é cada vez mais rara entre a juventude.

     O CONVÍVIO com os camaradas dos tempos da guerra é a melhor terapia para acalmar o corpo e reanimar a alma. Confraternizar em ambiente animado pela vivência dos tempos difíceis é um bálsamo que a todos deve interessar.

Muitos fecharam-se no silêncio dos seus traumas, mesmo quando os filhos perguntam porque se escondem as verdades do tempo dos embarques sem retorno, da guerra sem fim à vista. Ainda jovens, não conseguiam entender a dimensão da sua desgraça. A memória parece que hibernou nas catacumbas do sofrimento, enquanto o corpo sobrevive ao trauma das angústias incrustadas nas emoções oprimidas.

É tempo de acabar com o silêncio e correr com os fantasmas que os medos não conseguiram expulsar; os soldados atirados para as longínquas savanas e brenhosas matas africanas foram os homens mais válidos da Pátria, no contexto da engrenagem dos interesses económicos e estratégico-políticos dos anos sessenta.

Com o despertar dos Combatentes para a realidade dos valores do seu tempo, talvez ainda tenham tempo de viver sem o “nevoeiro” que lhes tolhe a alma e amofina o corpo, entrando assim numa espécie de terapia colectiva. Os convívios são uma prova irrefutável do novo pulsar da alma dos Combatentes!

Antes que os Combatentes percam a dignidade de estarem vivos, é preciso restaurar a memória sem ressentimentos do tempo que não podemos redimir; resistir à desmemória que nos tentam infligir por causa da descolonização atabalhoada é outra blasfémia lançada sobre os Combatentes.

Se alguém ficou a perder, foram os filhos da Nação que embarcaram nos porões dos navios e viveram com os ratos até ao desembarque em terras distantes! As queixas dos demais devem dirigir-se noutras direcções e nunca contra os nossos soldados. Com os contornos bem aclarados, só gente de má fé poderá duvidar do patriotismo dos combatentes do ultramar.

     É por tais razões que os combatentes são merecedores do respeito e do reconhecimento da Nação, especialmente dos organismos oficiais que devem proporcionar condições de vida tranquila, criando centros de apoio social, psíquico e psicológico para reparar as feridas invisíveis mas que podem ser detectadas em muitos dos intervenientes na guerra. O reconhecimento passa também pelos apoios sócio-económicos para os que não conseguiram integrar-se na vida profissional activa devido às mazelas resultantes da permanência em ambiente de guerra, que, objectivamente, causou estragos irreversíveis no miocárdio e no cérebro, levando ao desgaste prematuro destes órgãos, bem como à perda de proventos adequados à sua vida normal.

     Finalmente, para os que assumiram o compromisso da defesa das causas da pátria, o reconhecimento dos esforços dos combatentes pode ser gratificante, em vez da repulsa e do negativo sentimento de abandono, prejudicial ao espírito de unidade nacional que se pode reflectir na sociedade civil e nas novas gerações.

     Quando já ecoam os gritos dos que resistiram ao desgaste prematuro das suas vidas, é tempo dos governantes mostrarem algum apreço por esses homens, antes que a morte os sossegue irremediavelmente. Ainda há tempo para restaurar algumas vidas com dignidade.  

     Vamos em frente… marche!

 10 de Junho de 2016

Joaquim Coelho

– Combatente em Angola, por devoção; em Moçambique por imposição!






Conceito de Poesia


À Assistente Doutora Luciana Silva,

Directora da Comissão para  a “Antologia de Poesia da Guerra Colonial”.


Porque escrevo para descrever alguns estados de Alma?

Quando acompanhava o poeta Pedro Homem de Melo, na apreciação dos Ranchos Folclóricos que deveriam ser escolhidos para exibição na Televisão, deambulei por diversas terras do interior do Minho e das Beiras, onde fui sensibilizado para escrever algo em forma de poema. As paisagens e o ambiente rural desenvolveram em mim a mística da simplicidade dos camponeses e comecei a escrever versos para os Ranchos Folclóricos. O Professor Pedro Homem de Melo ficava horas e horas sentado à beira dos riachos a meditar; de quando em vez, também escrevia. Foi um tempo de grande aprendizagem, até porque este homem de Afife também foi meu professor.

Os primeiros poemas foram publicados na revista INICIAL do Colégio João de Deus, do Porto, e depois na “Notícia” de Angola e com crítica bastante favorável. Outros foram publicados em Moçambique “Jornal da Beira”, “Diário de Moçambique”, onde tive problemas com a Censura; também publiquei no boletim militar “Boina Verde”.  

Conhecia o poeta Egito Gonçalves de quando frequentámos o Teatro Experimental do Porto, no tempo em que era dirigido pelo grande António Pedro, entre 1957-60. Tempos depois de regressar da tropa (1969), falei-lhe nos poemas do diária de guerra e logo ele se prestou a colaborar na preparação de um livro com a finalidade de concorrer ao concurso da Editorial Inova. Decorria o ano de 1972. Escolhidos os poemas, organizou-se o livro que foi levado a concurso. Eram 168 poemas, quase todos sobre o tempo da guerra do ultramar. Dias antes da decisão do Júri, soube que a Comissão de Censura interferiu e a PIDE apreendeu o molho dos meus poemas. Nunca mais soube deles, porque ninguém arriscava dar-me informações. Fui aconselhado a ficar quieto. Até o “Prefácio” que abria o livro “Tempo Presente, poemas da guerra e da paz” foi confiscado. Junto fotocópia da capa e o texto do Prefácio.
Veio a revolução do 25 de Abril; tudo começou a mexer nos textos apreendidos. Também fui à procura, tendo encontrado 21 dos 168 poemas. Ao tempo não havia condições de fotocopiar e parte dos rascunhos estavam destruídos. Desanimei na divulgação, mas fui passando a limpo os rascunhos do diário que escrevi nas horas difíceis da vida em tempo de guerra. Ainda não está tudo pronto, mas deu para organizar cinco livros de poemas e três de texto narrativo do ambiente no meio da guerra. Poemas, são cerca de 430 de Moçambique, mais de 340 de Angola e mais de 840 de Portugal.
Foram escritos por impulso e sem respeitar qualquer regra literária. São a expressão dos estados de alma nos momentos mais delicados das minhas vivências temporais. Há de tudo um pouco, desde ideias filosóficas, deslumbramento de amores, angústias e incertezas no meio da guerra e intervenção social. Quanto a publicação dos livros, as editoras têm pouco interesse em o fazer às suas custas. Mas tive duas que o fizeram com sucesso, tendo ganho um prémio da Academia francesa, com o “Despertar dos Combatentes”.
Atendendo a que a guerra colonial me marcou para o resto da vida, tenho procurado mostrar que houve uma guerra que mexeu com a vida de mais de quatro milhões de bons portugueses (entre militares e respectivas famílias), matou cerca de dez mil, estropiou mais de trinta mil e traumatizou mais de duzentos mil. Enfim, aniquilou os sonhos de muitos homens duma geração. Coisa que tem sido escamoteada e desvirtuada pelos governantes e pelos decisores da sociedade, inclusive, pelos “senhores coronéis e generais” que ao tempo comandavam as tropas. 
Grande parte dos escritos conhecidos sobre a guerra colonial são de gente que não teve intervenção directa e, como tal, não sofreu na pele os efeitos da guerra. Em alguns casos, de Manuel Alegre e António Lobo Antunes, aparecem afirmações que são autênticos insultos aos verdadeiros Combatentes. Os antigos combatentes estão indignados com as mentiras e o modo redutor e infiel como são tratados. Até a RTP, no seu programa “A Guerra”, deu mais tempo de antena aos comandantes (muitos deles responsáveis por terem ficado abandonados mais de três mil mortos nas terras africanas) e aos mentores das chacinas que atingiram muitos civis portugueses, especialmente em Angola, não dando palavra àqueles que participaram nas mais complicadas operações de guerra. No meu caso, disponibilizei mais de três mil fotografias e prestei depoimento gravado durante 35 minutos e só apresentaram 50 segundos numa questão de reduzido interesse factual. Mas, alguns dos representantes da UPA-FNLA que aparecem na Televisão são bem conhecidos na arte de mandar massacrar inocentes indefesos no Norte de Angola; deviam ter sido julgados por genocídio e crimes de guerra. 
Ora, como podem entender, não acredito que a recolha de temas sobre a “Poesia da Guerra Colonial” venha a interessar aos combatentes, já que tudo quanto se fez até ao presente foi para servir de amostragem e deleite duma pseudo-elite intelectual que nada tem feito em prol das necessidades dos combatentes traumatizados pelas vivências no meio da guerra. Mesmo assim, estou disponível para colaborar, desde que a Antologia de poesia da Guerra Colonial seja um instrumento de divulgação em homenagem aos antigos combatentes.


Valongo, Março de 2010

Joaquim Coelho