MEMÓRIAS DA GUERRA ULTRAMARINA – 50 ANOS
A tragédia que anunciou o fim do Império ultramarino chegou em 4 de Fevereiro de 1961 a Luanda. A Casa de Reclusão Militar, a Cadeia de São Paulo e a 4ª Esquadra da PSP, foram atacadas por grupos de insurrectos que as assaltaram. A refrega sangrenta deu sete polícias e algumas dezenas de bandoleiros mortos. Foi uma madrugada de raiva que se anunciava por causa dos conflitos laborais com os trabalhadores
produtores de algodão na Baixa do Cassange. A agitação na cidade de Luanda era perceptível desde que as autoridades portuguesas começaram a prender os cabecilhas da revolta contra a empresa Cotonang, que quis obrigar os agricultores a cultivar o algodão a preços mais reduzidos. O sossego em Luanda terminou abruptamente. No dia do funeral dos polícias, e nos dias que se seguiram, a população branca avançou contra as populações dos muceques e abateu centenas de negros. Foi o atiçar do ódio que se veio a espalhar pelas terras do norte de Angola, a partir do dia 15 de Março de 1961. Este dia ficará na memória de muitas famílias de colonos como o mais trágico acontecimento no norte de Angola. As atrocidades foram tão violentas e dramáticas que ninguém podia ficar indiferente à quantidade de vítimas, entre as quais, muitas mulheres e crianças esventradas.
Os primeiros militares intervenientes, que resistiram ao tempo, têm gravado na memória os dramáticos acontecimentos ocorridos durante as missões que os levaram até aos confins daquele vasto território. As picadas cortadas com abatises ou valas profundas demoravam muitos dias a percorrer; o inimigo astuto, escondido entre o capim, aproveitava para atacar nos locais mais complicados para a defesa; as chuvas provocavam lamaçais de difícil progressão; o apoio aéreo, muito escasso, era um factor de preocupação permanente no socorro e evacuação aos feridos. Estes eram os principais obstáculos que os bravos soldados portugueses tiveram de enfrentar, até se conseguir estabilizar a ocupação das localidades vandalizadas, o que demorou cerca de cinco meses.
Nos primeiros tempos da guerra, os combatentes dos reduzidos efectivos militares tiveram que se esforçar até aos limites das suas capacidades humanas para socorrer as populações isoladas nos locais mais desprotegidos das povoações da região afectada pelos bandoleiros. Depois das atrocidades dos primeiros dias, os que escaparam, fugiram para outros locais na busca de protecção; muitas das vezes, acabaram por cair nas mãos dos sanguinários da UPA (União das Populações de Angola), que os mutilaram, deceparam e mataram.
As tropas mais activas e bem preparadas estavam a braços na contenção da revolta dos camponeses do Cassange e nas buscas aos muceques de Luanda. As companhias de Caçadores Especiais avançaram na reconquista das picadas e povoações dos Dembos, tendo sido a 6ª companhia que mais se notabilizou a dizimar tudo que era preto, com o Alferes Fernando Robles a destacar-se na guerra do “olho por olho, dente por dente”; a sua acção na reconquista do terreno da UPA ficou marcada por numerosas baixas entre mortos e feridos. A 5ª companhia andou a bater a zona do Caxito e Úcua, com recurso ao sistema da psico-social para acolhimento das populações, mas bastante repressivo para com os negros acusados de serem infiltrados da UPA.
Para socorrer os colonos e populações atacadas pelos bandoleiros, destacaram-se os grupos de Pára-quedistas organizados em secções, com especial relevo para a defesa das povoações de 31 de Janeiro, Damba, Maquela do Zombo, Sacandica, Quibocolo, Bungo, Songo, Mucaba, Lucunga e outras onde foram necessárias acções rápidas e eficazes. Destacaram-se alguns elementos mais ousados, entre eles, o Alferes Mota da Costa, os Tenentes Veríssimo e Mansilha, o sargento Santiago, os soldados Eugénio Dias e Pimentel. No decorrer das primeiras missões, morreram em combate o Alferes Mota da Costa, o soldado Domingos e o cabo Almeida Cunha (este por não se ter aberto o pára-quedas ao saltar sobre a serra da Canda).
Para avançar com mais força para a reconquista das terras tomadas pela UPA, foram mobilizados os Batalhões de Caçadores 96 e 114 e o Esquadrão de Cavalaria 149, para a reconquista de Nambuangongo (santuário das forças da UPA), com o custo de várias dezenas de mortos e centenas de feridos. A Força Aérea foi conquistando os céus do norte de Angola à medida que foram sendo activadas pistas nas povoações; as condições logísticas e materiais permitiram apoiar os Pára-quedistas nas grandes operações de reconquista de Quipedro, Serra da Canda, Sacandica e Inga, locais de difícil acesso por terra.
Ainda no tempo da reconquista e ocupação de posições no terreno, o Manuel Joaquim da Rocha Bastos, pertencente à Companhia de Caçadores 168 do BCaç159, relatou duas situações bem complicadas no “baptismo de guerra”:
- “Quando a companhia seguia de Catete para a fazenda Maria Teresa, sofremos uma forte emboscada, com tiros vindos do meio do capim; o combate foi prolongado e a reacção obrigou à retirada do inimigo, mas atingiu um companheiro que não resistiu e morreu. O comandante da força entendeu que os bandoleiros não deviam ficar sem resposta adequada e pediu reforços ao Batalhão; com mais um pelotão, desencadeou uma batida por toda a zona e durante dois dias limpámos tudo que nos parecesse bandido. Mais tarde, instalados em Quipedro, não nos deram sossego durante quatro meses, havia semanas em que os ataques eram diários, o que nem permitia a aproximação e aterragem das avionetas para reabastecer ou levar o correio. Tivemos alguns confrontos directos com os bandoleiros, pois chegaram ao ponto de nos desafiar para fora do arame farpado e na zona onde aterravam os aviões.”
A guerra durou treze longos e dolorosos anos, por ela passaram mais de um milhão de combatentes, que deram o seu melhor ao serviço duma causa que pouco lhes dizia. Serviram a Pátria que juraram defender, independentemente de ideologias ou de sofismas. Dos cerca de 10.000 mortos, mais de 1.700 ficaram lá abandonados em cemitérios espalhados pelos mais distantes locais. A guerra deixou mais de 30.000 deficientes; muitos outros regressaram com graves sequelas no corpo e na alma, com as quais vivem os dramas dos traumas e das doenças que lhes tolhem a vida. Mas a grande maioria desses homens souberam manter intacta a dignidade dos bons portugueses, mesmo quando os governantes os desprezam e ostracizam. Foram estes oitocentos mil que, sem qualquer apoio ou reconhecimento pelo serviço prestado à Pátria, se instalaram nas mais diversas actividades produtivas, investindo os seus conhecimentos e dinheiros ao serviço de Portugal. Foi tal o desprezo e a humilhação manifestada pelos poderes públicos que alguns milhares acabaram por seguir o rumo da emigração. A persistência das Associações de Combatentes permitiu que o Estado começasse a prestar alguma ajuda aos antigos combatentes mais necessitados; especialmente a Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra tem prestado valioso apoio médico e logístico, além dos projectos que estão em curso para construção de estruturas capazes de alojar os que vivem mais isolados e carenciados; é um trabalho meritório que devemos apoiar com brio e convicção, mas estaremos atentos aos protagonistas indesejáveis.
Como disse há algum tempo, num debate público sobre a aferição dos valores que equilibram uma sociedade racional, mantenho a opinião de que a questão dos heróis sempre incomodou os cobardes e os acomodados. Seja no combate para defesa da Pátria, seja no combate aos fogos ou nas missões de salvamento das populações atingidas por flagelos e tempestades. A questão é mais pertinente quando ouvimos dizer e lemos comentários a tentar distorcer esses valores, referindo que os que desertaram foram mais corajosos do que os que foram para a guerra; que os cobardes são aqueles que aceitaram ir combater nas terras ultramarinas. Os valores da solidariedade, da colaboração, da defesa dos princípios democráticos e da paz não dependem de ideologias ou de regimes políticos; aceitam-se, defendem-se e praticam-se. Não há meias tintas; ou se é bom cidadão ou não. Os marginais, os parasitas, os cobardes e os traidores são nocivos à sociedade; uns porque são criminosos, outros são acomodados; é preciso reagir, ser solidário e produtivo. São esses arautos do laxismo e do facilitismo que degradam os valores que devem balizar a aquisição dos conhecimentos necessários ao desempenho com competência, saber e respeito.
Sabemos que já lá vão 50 anos e o assunto das guerras ultramarinas não é tema recorrente nas escolas; o que é vergonhoso para a história de um país que deixou centenas de pessoas desenraizadas ou traumatizadas para o resto das suas vidas. Todos devem merecer respeito pelos anos passados em situações de perigo, sofrimento e privações de toda a ordem; uns aguentaram e foram valentes, outros fraquejaram e continuam a sofrer. Ainda somos muitos com direito de voto democrático, saberemos usá-lo com sentido do dever cumprido.
Joaquim Coelho - combatentes em Angola, por convicção; em Moçambique,
por imposição.
(Publicado na revista "O Veterano de Guerra" da APVG)
Por coincider com as minhas opiniões, faço vénia ao autor e deixo o seguinte Texto:
Lamentável é a ingratidão
Público 2011-03-17, por Pedro Lomba
A guerra colonial começou há 50 anos. Não é do meu tempo. Só não tem o significado da guerra do Peloponeso, porque, digamos, foi uma guerra que envolveu Portugal, e Portugal sempre é o país onde nascemos. É difícil falar dela sem ceder às brigadas do politicamente correcto. Não foi o caso do Presidente da República, que, numa cerimónia de homenagem aos antigos combatentes, invocou o exemplo da "coragem" e do "desprendimento com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar".
Isto, que em qualquer democracia digna não mereceria mais do que uma nota de pé de página, no nosso Portugalinho ainda não se pode dizer. O policiamento a que somos invariavelmente sujeitos deprime. A terreiro tinha logo de vir o Danton do burgo, Francisco Louçã, criticar Cavaco por "reescrever a História" e "distinguir a intervenção militar". E acrescentou a seguir o líder do Bloco de Esquerda: "Cavaco Silva está em guerra com o passado. Só assim se compreende comparar as "Forças Armadas de hoje com as da ditadura e do colonialismo."
Nunca me ocorreu fazer o mais leve reparo sobre aqueles que, tendo sido forçados pelo regime a combater uma guerra de que discordavam frontalmente, resolveram desertar, fugir ou exilar-se. (Recordo que essa infâmia foi arremessada contra Manuel Alegre nas últimas presidenciais.) Não é só por falta de legitimidade histórica ou política. Por uma questão básica de respeito: eles tinham convicções e se há exercício que testa genuinamente a consciência liberal de uma pessoa é esse. Nenhum Estado, nem mesmo numa democracia quanto mais numa ditadura, pode dispor em absoluto das convicções de consciência de uma pessoa. E não preciso dizer que muitos são credores do nosso agradecimento: lutaram por uma democracia que, apesar de ter chegado a este estado doentio, será sempre superior às alternativas.
Pelas mesmas razões, tenhamos a coragem de "vestir a pele" dos muitos portugueses nascidos na década de 30-40 que tomaram a decisão precisamente contrária. Melhor, que não tomaram qualquer decisão, porque encararam a participação na guerra como um facto inevitável. Foram muitos. Entenderam que o seu dever era estar ali. Fizeram-no pagando um preço pessoal elevado. Para a maioria, presumo, não era Salazar nem Caetano. Eram eles próprios, era o sentido do dever, da dignidade e da sobrevivência. Muitos eram milicianos, não eram bem-nascidos nas burguesias de Lisboa como o próprio Louçã e outros, não tinham tempo para pensar em política. E o que tem Louçã para dizer a esses portugueses: que estavam enganados, que todo aquele empenho, coragem e honra não merecem nenhum respeito, reverência ou admiração. Que eles não são, nem podem ser exemplo para ninguém. É isto que a cabeça totalitária de Francisco Louçã tem para lhes dizer.
Pois, como outros dizem, não apaguem a memória. Os antigos combatente são mesmo um exemplo. E isto, repito, não é reescrever a História. A História está escrita. Tem sido escrita. Não pode é ser a História contada pelos que dela se apropriaram.
Se Louçã percebesse, já não digo valorizasse, um mínimo da ética militar, um mínimo da continuidade de valores que deve animar um país, não diria que existiam umas Forças Armadas da "ditadura e do colonialismo" e outras da democracia. Existia um regime da ditadura, tal como existe outro regime da democracia. Sim, não são iguais. Mas o dever militar, que, entre outras coisas, requer obediência e prontidão, esse tem de ser o mesmo. A culpa e a responsabilidade pertencem aos políticos. Os portugueses impreparados que irresponsavelmente partiram para a Flandres em 1918 sabiam disso.
Louçã e companhia, na sua falta de gratidão e respeito pelo passado, gostariam de esconder os antigos combatentes, fechá-los num armário para que eles não apareçam, porque são a memória de um tempo iníquo. E dizem-se eles democratas e liberais. Não vejo onde.
Jurista
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