LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER
Aos que vão resistindo ao desgaste da vida e às
investidas dos fazedores de crises que nos atormentam e hipotecam o futuro dos
nossos filhos e netos e desgastam a nossa dignidade, venho lembrar que há 50
anos, em terras de Angola, os Pára-quedistas voluntariosos e valentes,
organizados em pequenos grupos de combate, souberam elevar bem alto o nome e o
valor dos Boinas Verdes.
Continua na memória dos sobreviventes que hoje
conseguem contar a história dos graves acontecimentos e dos horrores praticados
por sucessivas vagas de bandoleiros sanguinários que chacinaram, esventraram e
mutilaram crianças, mulheres, velhos e novos, pretos e brancos no norte de
Angola. Desde o Úcua ao Quitexe, passando por Nova Caipenda, Quibaxe,
Nambuangongo, Cuimba, Madimba, Buela, Zalala, Damba, Quibocolo, Bungo, Mucaba e
tantos outros lugares da região dos Dembos, onde os sinais do sangue derramado
por inocentes indefesos atiçou o sentido patriótico e fortaleceu o espírito de
sacrifício na luta contra as hordas assassinas. Com reduzidos recursos e muita
vontade de vencer, os Pára-quedistas estiveram na linha da frente na defesa das
populações mais atingidas pela selvajaria dos bandoleiros da UPA (União das
Populações de Angola). Foi na missão de socorro aos defensores de Mucaba, entrincheirados
dentro da igreja local; no Bungo, as capacidades de liderança do Alferes
Pára-quedista Mota da Costa permitiram uma defesa eficaz; na Damba, onde um
pequeno grupo de Boinas Verdes conseguiu suster os ataques; na povoação 31 de
Janeiro, o Tenente Pára-quedista Veríssimo teve papel destacado na organização
da defesa da população local, onde contou com a fidelidade e apoio do cabo de
cipaios Sebastião, do chefe de posto Vailão e do soba Camassa.
Foi no decorrer destas difíceis intervenções dos Pára-quedistas
que tombaram os primeiros Boinas Verdes: o soldado Pára-quedista Domingos,
durante a caminhada para Mucaba; o Alferes Pára-quedista Mota da Costa e o
civil Caras Lindas, quando procuravam manter a ligação entre os que reparavam a
ponte do Bungo e o soldado Pára-quedista Eugénio Dias, o civil António e dois
bailundos que se dirigiram a uma fábrica de café e serração próxima na procura
de material para a ponte.
Para suprir a falta do Alferes Mota da Costa, o
sargento Pára-quedista Joaquim Santiago assumiu a responsabilidade de
coordenação das acções necessárias para evacuar os mortos e os feridos até à
base do Negage. Helicópteros para evacuação não havia, apenas algumas viaturas
civis e pequenos Unimogues eram os recursos disponíveis para percorrer picadas
esburacadas e cortadas por árvores de grande porte.
Com audácia e tenacidade na defesa das gentes dessas terras martirizadas pela sanha assassina dos bandoleiros os Pára-quedistas demonstraram todo o seu saber e espírito de sacrifício no cumprimento do dever “honrando a Pátria de tal gente”. Os elogios e provas de gratidão vieram de todos os lados, os jornalistas tentavam colher mais informações dos acontecimentos. Depois das primeiras missões de reconquista e ocupação das localidades vandalizadas, os Caçadores Especiais e outras tropas que foram chegando a Luanda começaram a ocupação definitiva da região atribulada. As Tropas Pára-quedistas, já reforçadas com mais efectivos, entraram em acção nas grandes operações levadas a cabo nos saltos em Quipedro, na serra da Canda e em Sacandica (localidade fronteiriça com o ex-Congo Belga, no extremo norte de Angola), com intervenção a nível de companhia. Com o Batalhão e a Força Aérea bem organizados, em colaboração com as tropas de quadrícula instaladas nas zonas afectadas pela guerrilha, as missões dos Pára-quedistas passaram a ser rotineiras e normais.
Para situar no tempo o sentimento dos que viveram os
primeiros embates, não posso deixar de transcrever alguns recortes dos jornais
de Luanda, onde são relatados episódios com intervenção de Pára-quedistas:
- Da entrevista
do Soldado Eugénio Dias, que foi ferido durante o ataque dos bandoleiros quando
se encontrava na tal fábrica do café do Bungo, ao jornalista Moutinho Pereira
do jornal “O Comércio”, publicada em 12 de Maio de 1961: “O ataque foi na
segunda-feira, dia 8. Uma coluna de militares e civis, todos armados, seguiu
até à ponte que os bandidos tinham cortado, para a reparar. Ao chegar à ponte o
nosso comandante disse-me para ficar com os civis e protegê-los em caso de
ataque, enquanto eles seguiam. Fiquei sozinho, pois sabia que os meus camaradas
não podiam ir a pé… os carros não podiam atravessar a ponte… Ao sair da fábrica
do café, já distanciados, ouvimos um tiro entre o capim. Claro que ficámos
atentos e vigilantes. Mas aquela arma que disparou, por certo devido a algum
acidente, dera o alarme. Logo se seguiu um tiroteio intenso. Encontrámos
centenas de bandoleiros meio encobertos pelo capim. Os dois bailundos ainda não
tinham feito a tropa e estavam desarmados, conseguiram fugir e refugiar-se na
fábrica… Dei por mim a disparar a minha metralhadora ligeira para o meio do
capim. A meu lado, o civil, ajudava-me como podia… Já ferido nas pernas,
tentámos tomar outra posição… À nossa
roda tínhamos uma multidão ulutante, disposta a tudo para nos cortar a cabeça.
Gritavam como demónios… Saltámos para o meio do capim alto, costas com costas,
esperando o pior… por ali fiquei até perder as forças. Então, os meus camaradas
conseguiram passar. Logo que se desenvencilharam daquela corja vieram à nossa
procura…. Encontraram-nos feridos mas ainda conscientes no meio do capim,
apertando de encontro ao peito, as nossas armas.”
- O jornalista Sotto Mayor do “Diário de Luanda” na
edição de 17 de Maio de 1961 publicou alguns depoimentos sobre a situação no
posto de 31 de Janeiro.
O repórter acompanhou uma das missões aéreas das
avionetas do Aero Clube de Sanza Pombo e o chefe de posto e piloto Barros:
“Aterrámos, cerca das 13 horas, no pequeno campo de aviação, onde se fizeram
descargas de mantimentos e fomos convidados do chefe de posto Vailão e pelo
tenente pára-quedista Veríssimo, dois valentes, à volta dos quais, pela sua
actuação têm sido publicadas as mais largas reportagens. A defesa da povoação
está toda concentrada à volta do edifício do posto, onde a população se
recolheu. Pelas portas e janelas notam os sinais das lutas que têm sido
travadas, estando as varandas do prédio barricadas com sacos de areia e arame
farpado. Durante a refeição, servida numa grande mesa onde tomaram lugar grande
parte dos “páras” e comerciantes da região, tivemos ocasião de ouvir do próprio
chefe de posto, uma curiosa narrativa pormenorizada dos acontecimentos
registados. – “Nós, em dada altura, verificámos que não tínhamos condições de
defesa. Evacuámos, portanto, imediatamente a povoação. Toda a população foi
connosco. Seguimos para a Damba, sede de concelho. Foi no dia 16 de Abril de
1961. Após a nossa chegada, deu-se o primeiro ataque à localidade. Colaborámos
na defesa da Damba, neste e em mais três assaltos. Mas o nosso interesse era
regressar o mais depressa possível ao 31 de Janeiro. No dia 27 conseguimos uma
secção de Pára-quedistas, comandada pelo Tenente Veríssimo, para o nosso posto…
Tivemos que lutar com muitas dificuldades. Eram obstáculos de toda a ordem –
cortes profundos na estrada, árvores caídas, pontes danificadas. Era um nunca
mais acabar.” O tenente Veríssimo relembra alguns acontecimentos passados na
viagem: “Encontrámos ligeiras resistências durante o percurso de cerca de 84
quilómetros. No desvio para a povoação de Mucaba, a 12 quilómetros do destino,
recuperámos diversos rapazes, portugueses africanos, que estavam prisioneiros
dos bandoleiros no local conhecido por “Missão”. Temos tido diversos ataques,
os primeiros de dia, os restantes de madrugada. Agora apenas têm tentado… mas
depressa são repelidos e com baixas.”
Não havia tempo para pensar onde estava a razão; a necessidade de defender as populações indefesas e os postos isolados do norte de Angola era a prioridade, e a nossa fidelidade à Pátria impunha que cumpríssemos essas missões das quais saímos triunfantes, embora com grandes sacrifícios. Depois destas, muitas mais foram levadas a cabo com sucesso, as quais mereceram rasgados elogios e os mais altos louvores. Orgulhamo-nos dos nossos feitos e merecemos o reconhecimento da Nação. Apesar do ostracismo a que foram votados, os Combatentes portugueses, intervenientes nas guerras ultramarinas, são o que resta da gesta de valores que a Pátria contempla; dos cobardes não reza a história… muitos dos nossos governantes nunca souberam honrar a Pátria nem os juramentos e tentam desvirtuar os valores que “mais altos se levantam”.
- NAMBUANGONGO
Os pára-quedistas saltaram lá antes da chegada do
Batalhão 114. Para a maioria dos oficiais da Força Aérea e Pára-quedistas foi
um golpe baixo dos estrategas da Força Aérea, não respeitando o esforço dos
Batalhões que estavam a pouca distância de atingirem aquele objectivo; embora
com dificuldades em percorrerem o que restava dos difíceis caminhos...
In: “ESTILHAÇOS”, temas da guerra el Livro publicado
em 2019 e 2ª Edição em 2020