quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O DESPERTAR dos COMBATENTES...

 Extracto do Livro, passado em Angola

Trigésimo Sexto Capítulo    

                   Um CORPO... em forma de MÚMIA!

         Mais de uma semana após o incidente nas matas de Quimaria, fui encontrar os dois feridos no Hospital Militar em Luanda. O Fontes estava com tantas ligaduras que mais parecia uma múmia em estado deplorável – aguardava melhoras para poder aguentar a viagem para o hospital da Estrela, em Lisboa. Percebia-se que ainda estava inconsciente, e o que restava do seu corpo moribundo flutuava entre a vida que o metabolismo celular se esforçava por regenerar e a morte que pairava por cima da cabeceira da cama em forma de aparelhagem com apetrechos para ginástica!

       Para o Fontes, a vida tem várias vias: depois de ilibado da reclusão, onde passou os piores dias isolado na escuridão das masmorras húmidas, seguiu com os demais combatentes para as rotineiras missões de combate. Mais uma vez a sorte esteve arredada do seu caminho e, nesta encruzilhada da vida, foi ferido com gravidade. Agora, preso à cama do hospital, tanto pode melhorar e chegar ao convívio com a família, como pode escorregar para a sepultura, sem que sequer saber o que lhe aconteceu! De qualquer forma, já não regressará à metrópole inteiro.

        O Caetano, que levou uma chusma de pedaços de metal ferrugento no traseiro, quando saltava abaixo da viatura e se virava no ar, prevê-se que continue em Luanda até estar curado. Estendido na cama mesmo ao lado do Fontes, não se sentia muito confortável ao ver o companheiro coberto de ligaduras, ainda em coma, e com a vida segura por tubos. Mesmo assim, sente-se afortunado por estar vivo. E não estranha que o dr. Soudo tenha tanto pessoal nas consultas que antecedem as missões no norte; são já muitos meses de incertezas e o pessoal tenta esquivar-se. É um arrastar de sapatilhas de pés pretensamente doridos... Mas o médico não tem contemplações e, das largas dezenas de “doentes”, considera apenas dois ou três incapazes de seguir para o mato. 

     Só depois de ter saído do hospital e me ter sentado à entrada do Hangar Velho a meditar, pude compreender toda a profundidade das palavras do Caetano e as razões dos seus lamentos: “Esta ânsia de sofrimento aumenta a minha angústia. Quando olhei o Fontes atrás das grades, senti o impulso para a revolta que me fez repudiar os mentores daquela ingratidão contra homens dignos e corajosos. Agora, enclausurado neste hospital, com muitas incertezas quanto ao futuro e sem forças para protestar contra a ansiedade desmedida, sofro por mim e por ele; se não fossem os ténues sinais de vida daquela «múmia», mais pareceria estar a viver ao lado dum fantasma... Às vezes, fico amedrontado na noite escura!”

      Não é fácil descrever as viagens perigosas e patéticas que, em consequência da guerra, somos obrigados a fazer por essas terras do Norte onde os ataques inimigos deixam marcas irreparáveis. Por vezes, encontramos soldados do Exército num estado psíquico confrangedor. As carências são muitas e o desânimo aterrador. Será isto o “supremo sacrifício pela pátria?” O preço das vidas e o custo dos materiais estão a conduzir o país, pobre e inculto, à ruína; as nossas aldeias sofrem os efeitos do contraste com a modernidade que se vislumbra nos outros países.

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             AS PUNIÇÕES... E O RECONHECIMENTO!      

        Luanda – Depois de detidos na Casa de Reclusão de Luanda durante alguns meses, veio o resultado dos processos de averiguações de cujas conclusões da Secção de Justiça deram punições a cinco dos dezasseis presos, conforme se transcreve:

 

“ORDEM DE SERVIÇO nº. 153, de 28-6-962, do BCP21

... (3) Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20 (vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao 1º. cabo gradº. paraq. nº.... C. ALVES, “por ter sido um dos mais activos organizadores de uma reunião de praças pára-quedistas onde se discutiram assuntos e se tomaram decisões altamente atentatórias da disciplina e ter elaborado uma petição anónima, para conhecimento do Comando, onde se focavam as decisões tomadas na reunião”.

(5) Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20 (vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao sold. paraq. nº. ..../RD - ORLANDO “por ter sido um dos mais activos organizadores...”

(4) Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20 (vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao 1º.cabo paraq. nº. .../59 – J. VALENTIM, “por ter sido um dos organizadores de uma reunião de praças pára-quedistas, onde se discutiram assuntos e se tomaram decisões altamente atentatórias da disciplina e em seguida ter concordado com a apresentação ao Comando de uma exposição anónima onde se focavam as decisões tomadas na reunião efectuada”. Infringiu(ram) os nºs. 4º., 26º., 27º. E 49º. Do artº.4º. do R.D.M..”

 g. Condecorações, Louvores e Citações

(1) Pelo Secretário de Estado da Aeronáutica foram concedidos os seguintes louvores:

   a).............................................................................

d) Desde o início das hostilidades, em Angola, as Tropas Pára-quedistas têm vindo a distinguir-se por acções valorosas, praticadas em campanha, revelando, no cumprimento de difíceis missões, a rija têmpera que lhes fortaleceu o corpo e lhes moldou a alma – a têmpera que forja o verdadeiro militar.

Aceitando as desvantagens provocadas pelas condições do meio ambiente, orientando, com calma, visão e bravura a sua acção em combate, enfrentando, com decisão, entusiasmo e abnegação as dificuldades e evidenciando extraordinária resistência física e moral, os homens do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº. 21 têm sabido, em todas as circunstâncias, elevar bem alto as virtudes que são apanágio da sua profissão.

O aprumo, dignidade e elevação que exibiram na cerimónia de entrega da bandeira à sua unidade são mais um testemunho de que as Tropas Pára-quedistas continuarão a cumprir para além do dever.

Assim, manda o Governo da República Portuguesa, pelo Secretário de Estado da Aeronáutica, louvar os oficiais, Sargentos e Praças do batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº. 21, pelas altas qualidades demonstradas e pelos relevantes serviços prestados à Pátria.” 

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                   ACHINCALHADOS E EXPULSOS

         Depois de cumpridas as penas, os cinco pára-quedistas foram expulsos das fileiras das forças armadas. Na sequência da prisão dos elementos mais activos, o sargento Marco foi perseguido e achincalhado pela Pide. Primeiro, através de armadilhas montadas com uma menor que o seduziu e ele escorregou na calçada... e comeu-a; depois foi o escândalo dos processos jurídicos movidos pela família da miúda, em conluio com as autoridades. Para agudizar o escândalo, os elementos da Pide pressionaram, fizeram propostas indecorosas e difamaram a esposa do Marco até exaustão, deixando-a chegar ao desespero e às portas do suicídio. Por fim, pelo facto de ser “agente duplo”, aplicaram-lhe a pena de três anos de degredo no Forte de Penamacor. 

      Surpresa atrás de surpresa, apareceu a notícia de que o sargento era “colaborador” da Pide e fazia parte do processo dos bailes “pelados”! Curiosamente, esses factos não causaram tanto espanto como o caso do alferes do exército, que desapareceu! O tal que abandonou os camaradas na zona da CUCA!

      Porém, estas medidas azedaram mais as relações entre os colonos matumbos e a tropa que era insultada, humilhada e mal vista nas cidades; daí, o aumento de incidentes com as autoridades policiais de Luanda. Especialmente nas zonas dos bares nocturnos, as cenas de pancadaria são mais frequentes.

      Também temos os homens da Pide à procurava da “quinta coluna”! É visível a sua presença nas esplanadas das cervejarias a observar e a seguir pára-quedistas. Mas estes, em vez de os correrem a murro e a pontapé, como há um ano, preferem a calma das esplanadas e as cervejas refrescantes; e, de quando em vez, deliciarem-se no aconchego das mulheres bonitas e fogosas. Pois, sabem bem o que custa andar de mochila às costas e sofrer os tormentos das privações e dos perigos que as zonas de guerra comportam.

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                      SINAIS INQUIETANTES

       Consta que vão ser reduzidas as colunas de reabastecimento aos acampamentos do Norte e que vão regressar ao Sul os destacamentos dos Voluntários. Numa altura em que se está a criar mais confiança e segurança para o regresso das populações e dos administradores de posto às zonas de conflito, nem ao diabo lembrariam tais planos. Entretanto, as tropas continuam nas suas missões de patrulhamento dos itinerários e batidas às matas que possam abrigar os terroristas.

      A selva dormia as horas da noite que uma aragem deixava deslizar até de madrugada quando, finalmente, os pássaros tocaram a alvorada. Os olhos ainda turvos cravaram-se no morro que o dia oferecia, numa pesquisa aos abrigos dos bandidos. Os últimos sinais não deixaram ninguém tranquilo! Só nos meses de Março a Maio, seis emboscadas nas picadas para a Damba, três minas que rebentaram com viaturas nas estradas de Quitexe para Quissenzele e para o Dange, oito ataques de morteiro a acampamentos do exército nas povoações de Muxuluando, Dimuca e Songo e emboscadas do Songo para o Bembe deixaram um rasto de destruição e um clima de medo!

      Os mortos e os feridos resultantes deste recrudescer de ataques marcam uma inquietante tragédia na luta contra o terrorismo do Norte de Angola. E nem é bom pensar em deixar estes bandidos sem resposta até ao mês de Agosto.

      Perigosamente, os responsáveis pelos planos das operações, estão longe de perceber que as realidades do terreno estão muito distantes dos planos arquitectados nos gabinetes. Em certas missões, somos atirados para o meio da mata, sem qualquer hipótese de comunicação com o exterior, por dificuldade das transmissões. Naturalmente que, em caso de feridos graves, só resta esperar a morte! Sendo assim, parece que são os incompetentes, mascarados de pantomineiros, a ditar a sorte das tropas que comem o pó das picadas longas e bebem o suor que escorre pelo rosto, ficando sujeitos à sua sorte! Essa sensação de desconhecimento das realidades é mais evidente quando determinam missões apeadas em locais tão inacessíveis que o tempo é sempre a dobrar para chegar ao fim. O esforço asfixiante reduz a eficiência e aniquila a vontade de avançar, quando o desgaste é inútil.

      Também podemos discordar da forma como estamos a defender interesses de países estrangeiros, que se apropriam das riquezas alheias. As últimas concessões negociadas com as empresas, especialmente do petróleo e do manganês, são o corolário de outros negócios em que Portugal fica apenas com direito aos residuais do lixo. Ainda mais grave, quando existem indícios de que parte dessas empresas ajudam a financiar os terroristas, com a conivência de administradores residentes em Angola.

      E se tudo isso é verdade, o nosso sofrimento parece ser um pecado que nos deixa a consciência corroída pelo remorso! Mas a coacção para a continuidade da guerra, que põe o país moribundo e deixa a tropa ser espezinhada por esses interesses próximos, também pode catalisar os arrepios sofridos impiedosamente no meio das matas dando-lhes o impulso para lutarem com determinação contra os vendilhões da pátria, na certeza de que esses criminosos negociadores das vidas alheias hão-de cair no fundo dos infernos.

      As notícias da imprensa estrangeira contrastam com a sonolência dos jornais portugueses. Mesmo em Luanda, as notícias das agências internacionais são cortadas logo à saída do telex. O desassombro com que o Jornal do Congo trata alguns assuntos pode merecer o nosso aplauso, a falta de rigor e lucidez com que trata as questões angolanas denota uma forma astuciosa de camuflar o que de mais sério deveria ser analisado: a guerra que envolve algumas dezenas de milhar de soldados tirados da pacatez das suas aldeias e lançados no meio das matas e enclausurados dentro de autênticos campos cercados de arame farpado, entre o céu dos dias amenos e o inferno dos dias de canícula, sempre com os bandidos a controlar o espaço exterior.

      Para o Jornal do Congo, as guerras de poder enfadonho são um ultraje aos jovens que todos os dias se debatem com o sofrimento físico e psíquico que as situações de perigo e constante isolamento provocam. Enquanto isso, as grandes empresas estrangeiras vão surripiando as matérias-primas mais ricas de Angola, usufruindo de espantosos lucros com essa exploração. E os que andam na guerra continuam a sofrer e a morrer por uma “Angola é nossa”!

 

APONTAMENTOS DO FERRAZ:

Julho de 1962 – As agências de notícias internacionais, informaram que o presidente do MPLA, Agostinho Neto, já está em Leopoldeville a dinamizar o seu grupo de guerrilheiros para acções mais eficazes contra a ocupação portuguesa.

      É mais um sinal da disputa dos interesses estratégicos entre os dois grandes blocos políticos – os americanos com a UPA/FNLA e os russos com o MPLA.

      Tropas portuguesas mataram o principal comandante da ELNA (braço armado da UPA), João Batista, responsável pelas acções dos bandidos na região do Bembe. Foi treinado na Tunísia e na base de Kinkusu, no Congo.

Por Joaquim Coelho, Repórter de guerra


















 


sábado, 8 de maio de 2021

Combater por quem?

 

OS PORTUGUESES NAS GUERRAS ULTRAMARINAS

1 – Fundamentos do discurso patriótico

Por natureza, nenhum ser humano deseja a guerra. Os antepassados transmitiam o espírito de luta aos mais novos, por razões de sobrevivência, na disputa dos territórios e dos bens necessários ao consumo humano. Naturalmente que as pessoas tendem a defender aquilo que lhes pertence, mas ninguém tem vocação para o sofrimento que as guerras impõem aos seus participantes directos.

Admite-se que muitos soldados têm relutância em combater, especialmente quando desconhecem a causa do combate. Mesmo o discurso do patriotismo não funciona para todos os cidadãos de igual modo, tendo em conta as mudanças sociais, a idade, o estatuto social ou a identidade com a Pátria.

No caso português, quase todos os combatentes foram empurrados para a guerra em circunstâncias adversas aos seus interesses, com fundamento na preservação do território português, tão propagado pela comunicação social e nos discursos oficiais. As características do povo português têm pouco de guerreiros, mas muito de inocência ou moralismo ancestral, porque sempre fomos um povo mal compreendido pelos governantes com o complexo de superioridade justificado no compromisso mais absurdo da condição humana. A pregação dos superiores hierárquicos nunca foi capaz de justificar as razões da guerra nas terras ultramarinas, gratificante para alguns que colheram bons proventos, mas desgastante e dolorosa para a generalidade dos combatentes.

2 – Razões solidárias, sem consciência heroica

Por pressão dos poderosos interesses estrangeiros, por conveniências políticas e interesses militares, o abandono das terras ultramarinas criou graves prejuízos a muitos milhares de cidadãos que lá viviam, sendo a culpa da descolonização atirada para cima dos combatentes desmobilizados e abandonados à sua sorte. Por isso, aqueles que conseguiram integrar-se na sociedade, trabalhar e participar no desenvolvimento do país, tiveram o mérito de galgar as dificuldades e viver; já o mesmo não aconteceu com os que nunca conseguiram limpar da sua mente os traumas dos momentos difíceis, os quais continuam a carregar dentro de si as imagens terríveis dos mortos e esfacelados caídos a seu lado. Todos merecem respeito e reconhecimento, mas estes merecem, também, solidariedade pública.

Admitindo que muitos dos combatentes entenderam a sua missão fundamentada no sentimento de solidariedade para com os portugueses daqueles territórios, raramente o fizeram com o espírito de luta pela pátria, com consciência heróica. Freud soube definir as premissas que podem levar “os heróis ao espírito de luta” como justificativo da defesa duma comunidade que conduza ao conflito com significado moralista ou de defesa; daí se possa concluir que ninguém vai à guerra para ser herói, porque o sacrifício da própria vida não o justifica, especialmente quando os governantes desprezam a elite de homens que revelaram um estado de espírito altruísta e abnegado em circunstâncias severamente adversas na defesa das causas da Pátria.

3 – Abandono ou Reconhecimento

Embora não fossem bem compreendidos na sua missão, não desertaram… e cumpriram o sagrado dever que a Pátria lhes impôs, transmitindo à sociedade os valores duma elite moral e cívica que é cada vez mais rara entre a juventude. É por tais razões que os combatentes são merecedores do respeito e do reconhecimento da Nação, especialmente dos organismos oficiais que devem proporcionar condições de vida tranquila, criando centros de apoio social, psíquico e psicológico para reparar as feridas invisíveis mas que podem ser detectadas em muitos dos intervenientes na guerra. O reconhecimento passa também pelos apoios sócio-económicos para os que não conseguiram integrar-se na vida profissional activa devido às mazelas resultantes da permanência em ambiente de guerra, que, objectivamente, causou estragos irreversíveis no miocárdio e no cérebro, levando ao desgaste prematuro destes órgãos, bem como à perda de proventos adequados à sua vida normal.

Finalmente, para os que assumiram o compromisso da defesa das causas da pátria, o reconhecimento dos esforços dos combatentes pode ser gratificante, em vez da repulsa e do negativo sentimento de abandono, prejudicial ao espírito de unidade nacional que se pode reflectir na sociedade civil e nas novas gerações. Compreender o passado é fundamental para os alicerces do futuro.

Maia, 10 de Junho de 1995

Joaquim Coelho

Parte das Fotos das minhas reportagens na guerra

Manifestação em Luanda, população pede ajuda


As atrocidades dos terroristas da UPA em Angola












































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