Extracto do Livro, passado em Angola
Trigésimo Sexto Capítulo
Um CORPO... em forma de MÚMIA!
Para o Fontes, a vida tem várias vias: depois
de ilibado da reclusão, onde passou os piores dias isolado na escuridão das
masmorras húmidas, seguiu com os demais combatentes para as rotineiras missões
de combate. Mais uma vez a sorte esteve arredada do seu caminho e, nesta
encruzilhada da vida, foi ferido com gravidade. Agora, preso à cama do
hospital, tanto pode melhorar e chegar ao convívio com a família, como pode
escorregar para a sepultura, sem que sequer saber o que lhe aconteceu! De
qualquer forma, já não regressará à metrópole inteiro.
O
Caetano, que levou uma chusma de pedaços de metal ferrugento no traseiro,
quando saltava abaixo da viatura e se virava no ar, prevê-se que continue em
Luanda até estar curado. Estendido na cama mesmo ao lado do Fontes, não se
sentia muito confortável ao ver o companheiro coberto de ligaduras, ainda em
coma, e com a vida segura por tubos. Mesmo assim, sente-se afortunado por estar
vivo. E não estranha que o dr. Soudo tenha tanto pessoal nas consultas que
antecedem as missões no norte; são já muitos meses de incertezas e o pessoal
tenta esquivar-se. É um arrastar de sapatilhas de pés pretensamente doridos...
Mas o médico não tem contemplações e, das largas dezenas de “doentes”, considera
apenas dois ou três incapazes de seguir para o mato.
Só depois de ter saído do hospital e me
ter sentado à entrada do Hangar Velho a meditar, pude compreender toda a
profundidade das palavras do Caetano e as razões dos seus lamentos: “Esta
ânsia de sofrimento aumenta a minha angústia. Quando olhei o Fontes atrás das
grades, senti o impulso para a revolta que me fez repudiar os mentores daquela
ingratidão contra homens dignos e corajosos. Agora, enclausurado neste
hospital, com muitas incertezas quanto ao futuro e sem forças para protestar
contra a ansiedade desmedida, sofro por mim e por ele; se não fossem os ténues
sinais de vida daquela «múmia», mais pareceria estar a viver ao lado dum
fantasma... Às vezes, fico amedrontado na noite escura!”
Não é fácil descrever as viagens
perigosas e patéticas que, em consequência da guerra, somos obrigados a fazer
por essas terras do Norte onde os ataques inimigos deixam marcas irreparáveis.
Por vezes, encontramos soldados do Exército num estado psíquico confrangedor.
As carências são muitas e o desânimo aterrador. Será isto o “supremo sacrifício
pela pátria?” O preço das vidas e o custo dos materiais estão a conduzir o
país, pobre e inculto, à ruína; as nossas aldeias sofrem os efeitos do contraste
com a modernidade que se vislumbra nos outros países.
AS PUNIÇÕES... E O RECONHECIMENTO!
“ORDEM DE
SERVIÇO nº. 153, de 28-6-962, do BCP21
... (3)
Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20
(vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao 1º. cabo gradº.
paraq. nº.... C. ALVES, “por ter sido um dos mais activos organizadores de uma
reunião de praças pára-quedistas onde se discutiram assuntos e se tomaram
decisões altamente atentatórias da disciplina e ter elaborado uma petição
anónima, para conhecimento do Comando, onde se focavam as decisões tomadas na
reunião”.
(5)
Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20
(vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao sold. paraq. nº.
..../RD - ORLANDO “por ter sido um dos mais activos organizadores...”
(4)
Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a punição de 20
(vinte) dias de igual pena aplicada pelo Com.te do BCP21 ao 1º.cabo paraq. nº.
.../59 – J. VALENTIM, “por ter sido um dos organizadores de uma reunião de
praças pára-quedistas, onde se discutiram assuntos e se tomaram decisões
altamente atentatórias da disciplina e em seguida ter concordado com a
apresentação ao Comando de uma exposição anónima onde se focavam as decisões
tomadas na reunião efectuada”. Infringiu(ram) os nºs. 4º., 26º., 27º. E 49º. Do
artº.4º. do R.D.M..”
(1) Pelo
Secretário de Estado da Aeronáutica foram concedidos os seguintes louvores:
a).............................................................................
d) Desde o
início das hostilidades, em Angola, as Tropas Pára-quedistas têm vindo a
distinguir-se por acções valorosas, praticadas em campanha, revelando, no
cumprimento de difíceis missões, a rija têmpera que lhes fortaleceu o corpo e
lhes moldou a alma – a têmpera que forja o verdadeiro militar.
Aceitando
as desvantagens provocadas pelas condições do meio ambiente, orientando, com
calma, visão e bravura a sua acção em combate, enfrentando, com decisão,
entusiasmo e abnegação as dificuldades e evidenciando extraordinária
resistência física e moral, os homens do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas
nº. 21 têm sabido, em todas as circunstâncias, elevar bem alto as virtudes que
são apanágio da sua profissão.
O aprumo,
dignidade e elevação que exibiram na cerimónia de entrega da bandeira à sua
unidade são mais um testemunho de que as Tropas Pára-quedistas continuarão a
cumprir para além do dever.
Assim,
manda o Governo da República Portuguesa, pelo Secretário de Estado da
Aeronáutica, louvar os oficiais, Sargentos e Praças do batalhão de Caçadores
Pára-quedistas nº. 21, pelas altas qualidades demonstradas e pelos relevantes
serviços prestados à Pátria.”
Surpresa atrás de surpresa, apareceu a
notícia de que o sargento era “colaborador” da Pide e fazia parte do processo
dos bailes “pelados”! Curiosamente, esses factos não causaram tanto espanto
como o caso do alferes do exército, que desapareceu! O tal que abandonou os
camaradas na zona da CUCA!
Porém, estas medidas azedaram mais as
relações entre os colonos matumbos e a tropa que era insultada, humilhada e mal
vista nas cidades; daí, o aumento de incidentes com as autoridades policiais de
Luanda. Especialmente nas zonas dos bares nocturnos, as cenas de pancadaria são
mais frequentes.
Também temos os homens da Pide à
procurava da “quinta coluna”! É visível a sua presença nas esplanadas das
cervejarias a observar e a seguir pára-quedistas. Mas estes, em vez de os
correrem a murro e a pontapé, como há um ano, preferem a calma das esplanadas e
as cervejas refrescantes; e, de quando em vez, deliciarem-se no aconchego das
mulheres bonitas e fogosas. Pois, sabem bem o que custa andar de mochila às
costas e sofrer os tormentos das privações e dos perigos que as zonas de guerra
comportam.
A
selva dormia as horas da noite que uma aragem deixava deslizar até de madrugada
quando, finalmente, os pássaros tocaram a alvorada. Os olhos ainda turvos
cravaram-se no morro que o dia oferecia, numa pesquisa aos abrigos dos
bandidos. Os últimos sinais não deixaram ninguém tranquilo! Só nos meses de
Março a Maio, seis emboscadas nas picadas para a Damba, três minas que
rebentaram com viaturas nas estradas de Quitexe para Quissenzele e para o
Dange, oito ataques de morteiro a acampamentos do exército nas povoações de
Muxuluando, Dimuca e Songo e emboscadas do Songo para o Bembe deixaram um rasto
de destruição e um clima de medo!
Os
mortos e os feridos resultantes deste recrudescer de ataques marcam uma
inquietante tragédia na luta contra o terrorismo do Norte de Angola. E nem é
bom pensar em deixar estes bandidos sem resposta até ao mês de Agosto.
Perigosamente, os responsáveis pelos planos das operações, estão longe
de perceber que as realidades do terreno estão muito distantes dos planos
arquitectados nos gabinetes. Em certas missões, somos atirados para o meio da
mata, sem qualquer hipótese de comunicação com o exterior, por dificuldade das
transmissões. Naturalmente que, em caso de feridos graves, só resta esperar a
morte! Sendo assim, parece que são os incompetentes, mascarados de
pantomineiros, a ditar a sorte das tropas que comem o pó das picadas longas e
bebem o suor que escorre pelo rosto, ficando sujeitos à sua sorte! Essa
sensação de desconhecimento das realidades é mais evidente quando determinam
missões apeadas em locais tão inacessíveis que o tempo é sempre a dobrar para
chegar ao fim. O esforço asfixiante reduz a eficiência e aniquila a vontade de
avançar, quando o desgaste é inútil.
Também podemos discordar da forma como
estamos a defender interesses de países estrangeiros, que se apropriam das
riquezas alheias. As últimas concessões negociadas com as empresas,
especialmente do petróleo e do manganês, são o corolário de outros negócios em
que Portugal fica apenas com direito aos residuais do lixo. Ainda mais grave,
quando existem indícios de que parte dessas empresas ajudam a financiar os
terroristas, com a conivência de administradores residentes em Angola.
E se tudo isso é verdade, o nosso
sofrimento parece ser um pecado que nos deixa a consciência corroída pelo
remorso! Mas a coacção para a continuidade da guerra, que põe o país moribundo
e deixa a tropa ser espezinhada por esses interesses próximos, também pode
catalisar os arrepios sofridos impiedosamente no meio das matas dando-lhes o
impulso para lutarem com determinação contra os vendilhões da pátria, na
certeza de que esses criminosos negociadores das vidas alheias hão-de cair no
fundo dos infernos.
As
notícias da imprensa estrangeira contrastam com a sonolência dos jornais
portugueses. Mesmo em Luanda, as notícias das agências internacionais são
cortadas logo à saída do telex. O desassombro com que o Jornal do Congo trata
alguns assuntos pode merecer o nosso aplauso, a falta de rigor e lucidez com
que trata as questões angolanas denota uma forma astuciosa de camuflar o que de
mais sério deveria ser analisado: a guerra que envolve algumas dezenas de
milhar de soldados tirados da pacatez das suas aldeias e lançados no meio das
matas e enclausurados dentro de autênticos campos cercados de arame farpado,
entre o céu dos dias amenos e o inferno dos dias de canícula, sempre com os
bandidos a controlar o espaço exterior.
Para o Jornal do Congo, as guerras de poder enfadonho são um ultraje aos
jovens que todos os dias se debatem com o sofrimento físico e psíquico que as
situações de perigo e constante isolamento provocam. Enquanto isso, as grandes
empresas estrangeiras vão surripiando as matérias-primas mais ricas de Angola,
usufruindo de espantosos lucros com essa exploração. E os que andam na guerra
continuam a sofrer e a morrer por uma “Angola é nossa”!
APONTAMENTOS DO FERRAZ:
Julho de 1962 – As agências de notícias
internacionais, informaram que o presidente do MPLA, Agostinho Neto, já está em
Leopoldeville a dinamizar o seu grupo de guerrilheiros para acções mais
eficazes contra a ocupação portuguesa.
É
mais um sinal da disputa dos interesses estratégicos entre os dois grandes
blocos políticos – os americanos com a UPA/FNLA e os russos com o MPLA.
Tropas portuguesas mataram o principal comandante da ELNA (braço armado
da UPA), João Batista, responsável pelas acções dos bandidos na região do
Bembe. Foi treinado na Tunísia e na base de Kinkusu, no Congo.
Por Joaquim Coelho, Repórter de guerra