O SÍNDROMA DOS EMBARQUES
A curiosidade deixa o
pessoal preso à amurada e as madrinhas ficam chorosas e até as pedras do cais
choram baixinho enquanto os familiares dos embarcados se acotovelam m na
esperança de assinalar o último e doloroso adeus!
O destino é assim mesmo,
incerto, pior do que a provação do adeus será ingrata sorte dos que embarcaram
sem saberem para o que vão. Mas nem tudo é tão mau, embora a guerra seja um
quadro pintado pela desgraça dos que morrem sem gentilezas da mata que os
rodeia.
Muitos amores ficam
assim abandonados no cais de embarque, mas serão avivados pelas cartas dos
aerogramas, salvo se a fatalidade se intrometer pelo meio. Há que ter
esperança, afugentando os sobressaltos dos dias mais custosos. As contingências
das missões podem safar os embarcados onde tudo é possível.
A contar com o regresso,
muitos destes soldados acreditam no amor que perdurará até ao reencontro da
moça dos seus encantos. Só por ironia do destino o seu fado será atraiçoado. As
despedidas são sempre dolorosas, mas os que partem para a guerra, ainda no
tombadilho e encostados na amurada, não pensam nos imprevistos.
Não temos lágrimas
sublimes, mas alguns abraços e beijos sem excentricidade e com algum erotismo.
De resto, muita daquela gente amontoada no cais vive entronizada nas aldeias,
coberta por um manto de virtude e vergada ao trabalho honesto.
Os primeiros arrepios
com o embate das ondas alterosas aparecem à passagem frente ao estreito de
Gibraltar. O convés fica cheio de escumalha viscosa, por causa dos mais
indispostos vomitarem. Para muitos, a comida começa a ser um problema, porque
quanto mais comem mais vomitam... e o navio começa a ficar mal cheiroso, um
purgatório para alguns e um inferno para outros.
Uma saída em Lourenço
Marques levou muitos a lambuzarem as prostitutas dos bares da rua Araújo. Por
ali passam quase todos os mancebos que seguirão rumo a norte (Porto Amélia e
Mocímboa da Praia). O fumo e o ruído misturam-se nos bares e nos bordéis, onde
alguns se afogam em cerveja e os mais descuidados apanham as costumadas doenças
venéreas ou esquentamentos! Quase sempre… alguém fica em terra, quando o navio
se faz ao mar! É assim o bom povo português, quando vai em viagem para o outro
lado da África. As contingências desastrosas começam logo aí, quando os
comandantes não dão tolerâncias. Na imensidão das distâncias, ir à boleia é
impensável! Mal puseram os pés em África e começam a sentir a penitência que
lhes magoa a alma que não encontra salvação divina! Ainda não chegaram à guerra
e já estão metidos em sarilhos, fruto da sua imprevidência e pouca vivência em
terras estranhas. Em poucas semanas, os amores do cais de embarque começam a
ficar esquecidos, tal é a tormenta das mudanças e o deslumbramento das
confusões.
Instalados nos
acampamentos distribuídos por Cabo Delgado, há soldados com diversos níveis de
formação e padrões de educação, onde a convicção é coisa rara e o idealismo uma
abstracção. O mundo dos sonhadores começa a desmoronar-se ao som do
rebentamento das primeiras morteiradas. Muitos sonhos começam a ficar sem
sentido, perante a dureza das caminhadas, o calor do planalto e a secura das
savanas. A realidade começa a desgastar as energias próprias da idade, as
emoções vão esmorecendo e a rigidez da disciplina e da ordem vão diluindo a
educação genética dos ancestrais. As angústias e o medo acabam por sufocar a
última esperança de resistir ao amotinar dos desejos e a vontade fica amorfa. A
rigidez das regras de conduta em zonas de perigo vão-se desvanecendo e a
exposição ao fogo inimigo deixa a morte descansada, porque não precisa de muito
engenho para ter sucesso com a gadanha. Na guerra não há génios... mas pode
haver sorte como também há imprevidentes ou incautos. Acontece que os mortos
nem sempre são os menos cuidadosos... porque o azar bate à porta de qualquer
um, quando as balas são invisíveis e fatais.
Joaquim Coelho –
combatente em Angola e Moçambique