PANDEMIAS - Mortos sem valor de
mercado
Desenvolvemos uma sociedade onde
tudo — mas tudo — tem um valor de mercado. Onde não existem pessoas, mas
produtos e consumidores. Tudo é mercado. Esta é a civilização que criámos. O
coronavirus expôs os fundamentos dessa “descivilização” que tem como farol os
Estados Unidos da América e a Big Apple, Nova Iorque, como capital.
Nós, os portugueses e os europeus, pertencemos a essa civilização. Quando o
presidente dos Estados Unidos aponta o dedo à China como responsável pela
pandemia está a dizer que a “nossa” civilização perdeu, apodreceu, está a
reconhecer: A nossa Maçã está podre!
Há dias a comunicação social da
nossa civilização mostrava a sede do império — Nova Iorque, a Grande Maçã, a
metrópole que não dorme, a da Wall Street, a Bolsa que impõe o valor dos
produtos no mercado, a Lota Mundial — a enterrar mortos do “vírus chinês” em
valas comuns abertas por escavadoras, porventura chinesas, ou japonesas, ou
coreanas, operadas por hispânicos! Conclusão a tirar da confissão de Trump: a
China obrigou o nosso império a enterrar os seus mortos sem valor de mercado em
valas comuns. Para aí vão os que, no Império do Mercado, não têm dinheiro para
pagar um seguro privado de saúde, um fundo privado de pensões, um funeral como
os que aparecem nos filmes, num campo relvado e música de fundo! As mesmas
valas onde, provavelmente, há uns anos foram enterradas as vacas loucas,
aquelas que sofreram uma degenerescência neurológica, ou os frangos da gripe
aviária, ou os porcos da peste suína (que veio de Hong Kong) que também já
foram sacrificados por não terem valor de mercado.
Há dias também surgiram imagens
de milhares de americanos — os patrícios do nosso império — em filas de
automóveis para levantarem uma ração alimentar de sobrevivência. Tinham
deixado de ter valor de mercado. Estavam entregues, para já, à caridade. O
primeiro passo para se tornarem párias, literalmente tramps, mais
uns entre 50 milhões que é o número estimado para americanos abaixo do limiar
da pobreza, vagabundos, os sacos do lixo ambulantes à espera de irem para uma
vala comum.
Há dias surgiu a notícia de que
um fedor a podre infestava um bairro de Nova Iorque — a Big Apple, a Grande
Maçã cheirava a podre. O cheiro provinha de dezenas de corpos em decomposição
que haviam sido atirados para o interior de carrinhas, de seres humanos sem
valor que lhes permitisse serem sepultados. No império farol da nossa
civilização aqueles corpos sem valor só foram dali retirados para um qualquer
local ermo porque causavam mau cheiro e estragavam os negócios do bairro. Os
donos das lojas não vendiam os seus produtos e os inquilinos não pagavam as
rendas…

O New York Times publicou
uma lista dos maiores focos da pandemia nos EUA, as câmaras da morte. As
primeiras 50 maiores lixeiras humanas são prisões e lares de velhos, com a
intromissão de um porta-aviões (cujo comandante foi demitido por ter alertado
para a situação — dos outros porta-aviões nada se sabe) e uma central de
produção de eletricidade, por qualquer razão. Presos e velhos não têm valor de
mercado, a comunicação social e o imperador não falam neles. Os casos referidos
e extrapolados são os de uns navios de cruzeiro, de onde vêem o mundo as gentes
com valor de mercado; Gentes que até beneficiam dos negócios da Bolsa de Wall Street ou da especulação dos Bancos e das clínicas privadas.
O dito “vírus chinês “, na
versão de sacudir o capote de Trump, o imperador louco, também revelou que o
respeito pelos princípios do respeito pela pessoa humana da nossa civilização
está ao nível daquele que a nossa civilização acusa o seu inimigo: um ser
humano preso numa cadeia americana vale o mesmo que um ser humano preso numa
cadeia chinesa. Nada. Não têm valor de mercado. Nesse aspeto, entre a nossa
civilização e a da China não há distinção. Só para recordar: quer os Estados
Unidos quer a China têm pena de morte. Os primeiros matam para aliviar espaço nas cadeias; os segundos matam logo que acabe o julgamento! No critério do valor de nercado, há apenas uma pequena diferença: na china existe alguma protecção para os mais carenciados de apoio social, nos Estados Unidos não existem apoios oficais porque não têm qualquer valor de mercado - são lixo a ocultar.

Todas as civilizações assentam
no princípio do respeito por quem fez parte dela, por quem pertenceu a uma
comunidadae e esse respeito reflete-se no último ato, com maior ou menor pompa.
Este império, o nosso, produziu uma civilização, a primeira, em que os “seus
mortos” são lixo desde que sejam pobres e, logo, sem valor. O coronavirus
revelou a miséria desta civilização do mercado, da lei da selva, da ganância.
Trump é o ogre que configura a monstruosidade desta civilização. A Maçã está
podre e nós, os europeus, ou a deixamos apodrecer por si e nos afastamos, ou
apodrecemos com ela.
Livrarmo-nos desta crise é
afastarmo-nos da maçã podre.
O Professor
Dr. Ladislau Dowbor, disponibiliza a "Pedagogia da Economia”: educando
para o mundo real.
NOTA: Durante a actual pandemia de coronavírus, o governo
turco adoptou uma abordagem secular, proibindo funerais para aqueles que tenham
morrido da doença e tomando a decisão inequívoca de fechar mesquitas às
sextas-feiras, quando os fiéis normalmente se reuniam em grandes grupos para a
oração mais importante da semana. Os turcos não se opuseram a essas medidas.
Por maior que o nosso medo seja, é também sábio e tolerante.
Para que um mundo melhor surja após esta pandemia,
devemos abraçar e nutrir os sentimentos de humildade e solidariedade gerados
pelo momento actual.


A UNIÃO
EUROPEIA E A GANÂNCIA DOS PODEROSOS
A «repugnância» do primeiro-ministro da República Portuguesa com
o comportamento do ministro das Finanças da Holanda é legítima, saudável, até
catártica. Ao mesmo tempo, porém, é estranha e surpreendente. Porque o chefe do
governo português não pode ignorar que a atitude de Woepke Hoekstra não é um
caso isolado, uma birra pessoal: reflecte exactamente o espírito e a prática da
União Europeia, dos quais Portugal vai tendo a sua dose de experiência própria.
E quando António Costa afirma dramaticamente que «ou a União Europeia faz o que
tem a fazer ou acabará» isso não passa de um banal e inócuo sound bite: sabe
perfeitamente que a União Europeia não fará o que, no seu entender de ocasião,
«tem a fazer» – salvar pessoas da tragédia do COVID-19 – e muito menos irá
acabar por causa disso.
A posição do ministro das Finanças da Holanda, neste caso em
relação à situação em Espanha, está perfeitamente sintonizada com as medidas
económicas, financeiras e políticas contra os cidadãos tomadas pela União
Europeia, por exemplo à sombra da crise iniciada em 2008-2009 e que continuam
válidas – passando a fazer parte do acervo genético da instituição. O que as
troikas e outras criaturas fizeram, designadamente contra os gregos e os
portugueses, os comportamentos coloniais de Bruxelas em relação a vários
países, as normas aprovadas salvando elites e sacrificando pessoas encaixam
perfeitamente na mentalidade reproduzida pelo empedernido Hoekstra.
O qual, aliás, mais não fez do que afinar o discurso pelo do seu
primeiro-ministro, Mark Rutte, quando declarou: «Na Holanda os pacientes mais
idosos ficarão a receber tratamento em casa, considerando-se que, dadas as
poucas hipóteses de sobrevivência, será mais humano deixá-los nos seus lares».
Poder-lhe-íamos chamar «selecção natural», como aliás são
obrigados a fazer, em desespero, profissionais de saúde italianos e espanhóis
quando têm que decidir quais os pacientes a quem aplicam ou não aplicam os
equipamentos de sobrevivência – uma vez que os existentes não chegam para todos
os infectados pela pandemia.
Isto acontece na Europa que se considera desenvolvida e civilizada.
Mas onde as instituições europeias, moldadas pelo regime neoliberal único e
global, se têm dedicado a destruir os serviços públicos de saúde em nome do
combate ao défice e da prevalência absoluta do euro – nem que seja através de
apurados métodos de tortura social.
……………
Se dúvidas houvesse sobre o que é o Eurogrupo e como procede –
sem quaisquer parâmetros humanos – basta ouvir as gravações das reuniões onde
se programou o sacrifício dos gregos, captadas pelo ex-ministro Yanis Varoufakis.
Está lá tudo expresso e explícito, sendo que a vocação punitiva não é de um
ministro das Finanças holandês, de um alemão, de um austríaco, finlandês,
lituano ou belga – é de todos. É a austeridade como sistema. Por isso, entregar
a procura de uma pretensa solução contra os efeitos do COVID-19 a uma entidade
austeritária como essa, chefiada por um obcecado do défice, só poderá dar os
resultados a que estamos habituados, e que não se propõem salvar pessoas.
Hecatombe na saúde
«A
realidade dos dias de hoje, marcada por uma catástrofe de âmbito global,
confirma que o neoliberalismo é potencialmente genocida. Transformar a saúde e
a segurança social do ser humano em negócios orientados pelo lucro máximo viola
abertamente o direito à vida de milhões e milhões de pessoas.»
O Papa Francisco reconhece que assim é, ao chamar a atenção para
a necessidade de pôr «as pessoas em primeiro lugar»: «(…) todos sabemos que
defender as pessoas supõe gastos económicos; seria triste se a opção escolhida
fosse a contrária, o que levaria à morte de muita gente, um genocídio viral».
…………………..
Já percebemos que o desprezo pela vida está latente nas palavras
do primeiro-ministro holandês e do seu ministro das Finanças. Porém, elas não
são mais do que expressões de uma mentalidade que há muito deixou de ter
contemplações com o ser humano, idoso ou não, quando este se atravessa no meio
das estradas dos lucros.
A pandemia gerada pelo novo coronavírus expõe talvez essa
realidade como nunca; e põe a descoberto a cobardia do regime dominante contra
os mais frágeis da sociedade.
Mark Rutte declarou que, «devido às suas poucas hipóteses de
sobrevivência», os mais idosos deverão ficar a morrer em casa.
O seu conceito, aliás, nada mais é do que a reedição da tese de
um ministro japonês das Finanças, Taro Aso, que em 2013 defendeu que «os
cuidados de saúde com os mais idosos significam custos desnecessários».
…………..
Daí ao layoff…
Postas as coisas nestes termos não surpreende que, com ou sem
quarentena, esteja estabelecida como dogma a ligação entre o COVID-19 e o
desemprego, mesmo que seja matizado com a nuance de layoff, esse método
de pôr os trabalhadores e, ao mesmo tempo, contribuintes a sustentar as
empresas através do Estado como maneira supostamente única de tentarem garantir
os seus empregos após a pandemia.
Na mentalidade neoliberal, hard ou soft,
não existe outra maneira de perspectivar a economia durante e após a pandemia
que não seja sacrificando os trabalhadores e pondo o Estado a sustentar as
empresas, isto é, o patronato.
Não há como crises genéricas ou pandemias para o Estado passar
de maldito a salvador do «tecido empresarial», obviamente privado.
O que se adivinha no ar do tempo, através das movimentações dos
expoentes neoliberais, com destaque para a União Europeia irmanada a Trump, é a
necessidade de salvar o capitalismo do COVID-19, de produzir riqueza privada
com recursos públicos; e para isso haverá que exigir mais sacrifícios humanos
daqueles que, idosos ou não, escapem à peste do novo coronavírus.
……………..
Pelo caminho que as coisas levam, e recordando experiências
recentes, se os cidadãos não se organizarem para fazer frente ao que aí vem na
sequência do que aqui está não faltarão mais neoliberalismo, mais
autoritarismo, mais sacrifícios e austeridade para a generalidade da população
– que não para as elites – menos direitos sociais e humanos e, claro, menos
liberdades e ainda muito menos democracia.
02-04-2022
José Goulão; Exclusivo O
Lado Oculto/AbrilAbril
NOTA JC: “Quem não
perceber o que está em movimento contra os direitos humanos e contra a
dignidade dos cidadãos, poderá ser surpreendido na sua ignorância e trucidado
sem piedade pelo sistema genocida que avança para sufocar toda a forma de
liberdade e os direitos cívicos e sociais.”
Encavalitadas na onda de terror do medo inflamado pela
comunicação social, as empresas multinacionais estão a arrecadar lucros fabulosos
como nunca se viu. Então, as farmacêuticas aproveitam a maré do caos governativo
dos tenores desta catástrofe social para programarem a evolução do coronavírus “ad
eternam”, porque as instituições e os governos fracos e amorfos não lhes travam
a ganância genocida.